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Secas do passado e presente: o que os registros paleoclimáticos revelam sobre a estiagem no Nordeste

As cenas de rios secos, reservatórios esvaziados e lavouras devastadas que marcam o semiárido nordestino em 2025 não são novidade na trajetória climática da região. Muito antes dos satélites e dos pluviômetros, as cavernas do Rio Grande do Norte já registravam em suas estalagmites os sinais de um Nordeste vulnerável a extremos de estiagem e chuva. Hoje, esses testemunhos de rocha ajudam cientistas a entender a dimensão das secas atuais, assim como a projetar o que pode estar por vir caso medidas preventivas não sejam adotadas.

“As secas históricas do passado do Nordeste, incluindo as registradas nas estalagmites e nos manuscritos, foram eventos extremos de secas, assim como temos observados atualmente”, explica Giselle Utida, bióloga e pós-doutoranda no Departamento de Geofísica do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). Para ela, a principal diferença está na intensidade. “Esses registros mostram que os eventos de secas extremos não são novidade, porém se mostram mais intensos atualmente, possivelmente devido à interferência humana no aumento das temperaturas e no desmatamento”, acrescenta.

O passado escrito na pedra

Giselle Utida é autora do capítulo “O paleoclima potiguar desde o Último Máximo Glacial”, que compõe o livro Cavernas – O Carste Potiguar, lançado em julho de 2025 pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (ICMBio/CECAV) no Congresso Internacional de Espeleologia.  A autora descreve em detalhes como os estalagmites e sedimentos de cavernas de Apodi, Felipe Guerra e Baraúna preservam informações climáticas acumuladas ao longo de até 26 mil anos. Pela análise isotópica de oxigênio e carbono, os cientistas reconstruíram a alternância de períodos secos e úmidos e identificaram momentos de instabilidade climática comparáveis às estiagens modernas.

Um exemplo marcante ocorreu há cerca de 4.200 anos, quando uma mudança abrupta reduziu drasticamente as chuvas e abriu espaço para o estabelecimento do bioma Caatinga. “O evento ocorrido 4.200 anos atrás, apesar de ter sido provocado por mudanças naturais do clima, associada ao ciclo de precessão dos equinócios, demonstra como a alteração do clima pode desencadear mudanças ambientais extremas”, detalha Utida.

A redução da cobertura vegetal nesse período levou à exposição dos solos e à intensificação dos processos erosivos. Segundo a pesquisadora, trata-se de uma lição valiosa para o presente, em especial no ano de COP30 no Brasil. “Esse exemplo demonstra que a alteração da vegetação e do clima, como temos observado hoje, principalmente em face ao aumento dos eventos extremos, podem levar a mudanças irreversíveis nos biomas, como o Cerrado e a Amazônia, que cada vez mais têm sofrido com o desmatamento”, reforça.

Entre geleiras e monções

Giselle Utida conta que, além do evento de 4.2 quilo anos, que foi um dos momentos climáticos mais severos da do Holoceno (época geológica atual, que começou há aproximadamente 11.700 anos com o fim da última Era Glacial e que segue hoje) outros marcos climáticos globais também deixaram sua assinatura no semiárido. Entre 17 mil e 15 mil anos atrás, o chamado Heinrich Stadial 1 trouxe mais chuvas para a região, resultado de alterações na temperatura do Atlântico Norte. O registro mostra como o Nordeste respondeu a dinâmica oceânica de grande escala. “Ao longo dos últimos 26 mil anos nós podemos citar dois períodos como sendo os de maior instabilidade climática, em 4,2 mil anos e o evento Heinrich, o HS1”, contextualiza.

Essas informações, segundo a pesquisadora, são cruciais para entender como fenômenos de longa duração moldaram o regime de chuvas. A pesquisadora resume que “no caso da insolação, ela é predominante na escala de tempo de milhares de anos, pois seus ciclos ocorrem a cada 21 mil anos aproximadamente. Já a dinâmica oceânica tem uma influência em modular o clima ao longo de milhares a centenas de anos”, acrescenta.

Possíveis conexões com o presente

Se as secas milenares ocorreram em resposta a ciclos naturais, hoje o quadro se agrava pela ação humana. O aumento das emissões de gases de efeito estufa, o desmatamento e o uso intensivo do solo aceleram processos que, antes, seguiam ritmos mais lentos. Para Giselle Utida, estudar o paleoclima permite “revelar padrões climáticos ainda não conhecidos ou confirmar a frequência de ocorrência de alguns padrões observados”, explica.

Ela lembra que poucos registros meteorológicos disponíveis no Brasil têm pouco mais de um século, o que limita a compreensão de tendências de longo prazo. “Na região Nordeste, em especial na porção mais a norte, a ZCIT é a principal responsável pelas chuvas e conhecer o seu comportamento ao longo do tempo e sua frequência de mudanças pode auxiliar na previsão de novos eventos tanto na região Nordeste, quanto em outras áreas”, afirma.

Essa perspectiva histórica ganha peso diante das projeções recentes que indicam maior frequência e intensidade de estiagens. As análises de estalagmites, cruzadas com modelos climáticos, reforçam que o semiárido nordestino continuará a enfrentar desafios crescentes, exigindo políticas públicas robustas de adaptação.

Implicações ambientais e sociais

O impacto das secas não se limita à escassez de água. A transformação da vegetação e a erosão dos solos, observadas no passado remoto, sinalizam riscos para a sustentabilidade dos biomas. “Essas evidências reforçam a necessidade da restauração de áreas abandonadas pelo setor agropecuário, que já apresentam a remoção da vegetação que protegeria os solos, assim como a preservação e conservação de áreas estratégicas para evitar o avanço dos processos erosivos”, defende Utida.

No plano humano, os registros mostram que comunidades também foram afetadas por colapsos ambientais. Embora os dados arqueológicos nem sempre permitam conclusões diretas, há evidências de deslocamentos populacionais relacionados à instabilidade climática. No presente, milhões de nordestinos dependem da regularidade das chuvas para agricultura, pecuária e abastecimento urbano, o que amplia a relevância do alerta científico.

Pesquisas em andamento

A equipe liderada pelo Professor Dr Francisco Cruz do Instituto de Geociências (IGc-USP), co-autor da publicação segue expandindo as análises para compreender a frequência das estiagens. “No momento, estou trabalhando em parceria com a pós-doutoranda Juliana Nogueira do IGc-USP em novos dados do Nordeste para identificar e classificar os eventos extremos no norte da Bahia ao longo dos últimos 2,5 mil anos que sofrem influencia tanto da ZCIT como das monções sul-americanas”, conta Utida. O objetivo é detalhar quantas vezes as secas extremas ocorreram, em que magnitude e quais fatores as desencadearam. Esse esforço, afirma, terá desdobramentos diretos na compreensão do futuro: “Em um próximo passo, descreveremos esses eventos para os últimos 12.000 anos”.

O aprendizado das rochas

A história gravada em estalagmites potiguares revela um Nordeste marcado por oscilações climáticas que alternam períodos úmidos e secos. Mas o paralelo com a atualidade é inevitável. Se antes os extremos eram fruto de processos astronômicos e oceânicos, hoje a ação humana adiciona uma camada de incerteza e risco.

Ao comparar o passado e o presente, a pesquisadora reforça o valor estratégico da paleoclimatologia. Entender como a Zona de Convergência Intertropical oscilou, assim como as monções, em milhares de anos permite calibrar modelos que, no futuro, orientarão decisões sobre uso da terra, conservação ambiental e segurança hídrica. Mais do que reconstruir histórias de um clima remoto, os estudos mostram que o semiárido nordestino está diante do desafio, cada vez mais urgente, de conviver com secas que não são apenas um traço do passado, mas uma ameaça intensificada pelo presente.

Fonte: SENSU Consultoria de Comunicação 

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