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O que o estudo sobre desmatamento na Amazônia como causa da seca ensina sobre os rios voadores

Os rios voadores são invisíveis aos olhos, mas determinam o ritmo das chuvas, da produção agrícola e até da economia brasileira. São massas gigantescas de vapor d’água que se formam na atmosfera sobre a Amazônia e viajam milhares de quilômetros, transportando umidade da floresta até o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. Trata-se de um fenômeno ao qual a floresta age como uma imensa bomba d’água, captando a umidade que chega do oceano e devolvendo-a à atmosfera por meio da evapotranspiração. Quando esse ciclo se rompe, o clima de todo o continente se desorganiza.

“Os rios voadores são enormes correntes atmosféricas de vapor de água que se deslocam da Amazônia em direção ao Sudeste, ao Sul e ao Centro-Oeste do Brasil”, explica o professor Marco Aurélio de Menezes Franco, do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP). “Esse vapor entra na floresta pelos ventos vindos do oceano e é recirculado graças à evapotranspiração das árvores. Quando desmatamos, cortamos esse fluxo vital de umidade”, resume.

Umidade em movimento

O conceito dos rios voadores, amplamente estudado desde os anos 1990, tem ganhado novo peso diante das evidências científicas mais recentes. O artigo publicado por Franco e colegas na revista Nature Communications, assinado também por pesquisadores do Instituto de Física da USP, MapBiomas e Max Planck Institute for Chemistry, quantifica pela primeira vez o impacto do desmatamento sobre as chuvas e as temperaturas da Amazônia e, portanto, sobre o funcionamento desses “rios invisíveis” que regam o país.

Ao analisar dados de 35 anos (1985–2020) em 29 áreas da Amazônia Legal, os cientistas conseguiram separar o efeito das mudanças climáticas globais do efeito local do desmatamento. O resultado aponta que 74,5% da redução de chuvas durante a estação seca e 16,5% do aumento da temperatura máxima da região são explicados pela perda de floresta, não por fenômenos globais.

O estudo, publicado em setembro de 2025, mostra que as regiões mais devastadas (o chamado “arco do desmatamento”, que se estende do sul do Pará ao norte do Mato Grosso)  concentram os impactos mais severos. A perda de vegetação reduziu em média 21 milímetros de chuva por estação seca, enquanto a temperatura máxima subiu 2 °C nas últimas três décadas e meia. “Quando removemos a floresta, eliminamos o principal produtor de vapor d’água da Amazônia”, observa Franco. “É como desligar uma usina hidrológica continental”.

Efeito dominó sobre o agronegócio

Os efeitos desse desequilíbrio já são perceptíveis fora da Amazônia. As massas úmidas que antes abasteciam o Centro-Oeste e o Sudeste estão enfraquecendo, afetando o regime de chuvas e a rentabilidade das lavouras. “Os produtores rurais já sentem no bolso o impacto do desmatamento. As safrinhas (aquelas plantações de entressafra) estão cada vez menos rentáveis porque as chuvas estão diminuindo”, afirma o pesquisador.

Ele explica que o Brasil é um dos poucos países do mundo onde há cultivo de duas safras no mesmo ano graças ao transporte quase contínuo de umidade proveniente da floresta. “Quando esse fluxo se reduz, o risco de seca aumenta e as safrinhas deixam de ser viáveis. Isso afeta diretamente a economia nacional, porque a agricultura brasileira depende desses rios voadores”, destaca.

Entre as culturas mais ameaçadas estão soja, cana-de-açúcar e sorgo, que predominam nas regiões mais próximas ao Cerrado e ao arco do desmatamento. “São áreas que têm avançado cada vez mais para dentro do bioma amazônico, o que cria um paradoxo: o agronegócio expande a fronteira agrícola destruindo justamente o sistema climático que o sustenta”, observa Franco.

Os dados do estudo revelam uma transição em curso. A Amazônia, tradicionalmente úmida, pode estar evoluindo para um regime climático mais parecido com o do Cerrado e, em cenários extremos, até com o da Caatinga. “Nossos resultados mostram que, se o ritmo atual de desmatamento continuar, o bioma amazônico pode sofrer uma transformação climática profunda, tornando-se mais seco e quente. Em 2035, poderemos ter um aumento adicional de 0,6 °C na temperatura máxima e uma redução de mais 7 milímetros de chuva por estação seca”, afirma o pesquisador, citando as projeções da equipe. O estudo destaca também que os efeitos mais intensos ocorrem logo no início da devastação: entre 10% e 40% de perda de floresta, os impactos sobre as chuvas são mais dramáticos. “Isso significa que cada hectare preservado nas áreas ainda intactas tem um valor climático imenso. O efeito não é linear: o começo do desmatamento é o mais destrutivo”, explica.

A floresta como infraestrutura climática

Na prática, a Amazônia atua como uma infraestrutura natural do clima. As árvores extraem água do solo e a devolvem à atmosfera em forma de vapor, que condensa e alimenta as chuvas no continente. “A floresta captura dióxido de carbono, transforma esse carbono em biomassa e libera vapor d’água. Quando a derrubamos, perdemos não apenas a sombra e o carbono fixado, mas a própria máquina de evapotranspiração que sustenta o ciclo das águas”, explica Franco

Ele enfatiza que a destruição da floresta não se restringe à Amazônia. “O desmatamento afeta diretamente o regime de chuvas do Sudeste e do Sul, regiões que dependem do transporte de umidade da floresta. Quando esse transporte diminui, as chuvas escasseiam e as temperaturas sobem, aumentando o risco de estiagens severas”, afirma.

O estudo também revela que as emissões globais de gases de efeito estufa, embora dominantes no aumento das concentrações de CO₂ e metano, têm papel secundário nas mudanças locais de precipitação. Apenas 25% da redução das chuvas foi associada ao aquecimento global, enquanto 75% decorrem da devastação florestal. “Os efeitos das mudanças climáticas são globais, mas o desmatamento é um gatilho regional poderosíssimo”, diz Franco

 O desafio da restauração

Para o cientista, conter o desmatamento e investir em reflorestamento são medidas urgentes. “O reflorestamento deve ser feito em larga escala, com espécies nativas e sob coordenação do governo. A Amazônia é continental, então o esforço precisa ser igualmente grande”, propõe. Ele aponta também que não se trata apenas de plantar árvores, mas de remover as pressões sobre o bioma. “É preciso combater o desmatamento criminoso, o fogo, a mineração ilegal e a expansão desordenada do gado. E, ao mesmo tempo, envolver as comunidades locais e povos indígenas, que são os verdadeiros guardiões da biodiversidade”, acrescenta

Franco também avalia que é, segundo ele, perfeitamente possível explorar economicamente a floresta de maneira sustentável. “Os produtos florestais não madeireiros, o turismo científico e a biotecnologia oferecem caminhos muito mais rentáveis e duradouros do que a devastação. Mas é preciso vontade política e planejamento”, defende.

COP30 e possível legado amazônico

A próxima Conferência do Clima da ONU (COP30), que será realizada em novembro em Belém (PA), oferece uma oportunidade histórica para o Brasil transformar evidências científicas em compromissos concretos. “É fundamental que os tomadores de decisão levem em conta esses dados. Agora, temos números: sabemos o quanto o desmatamento pesa sobre as chuvas e as temperaturas. É hora de agir com base em ciência”, afirma o professor

Segundo ele, preservar as áreas ainda intactas é a forma mais eficaz e barata de proteger o clima. “O desmatamento inicial tem impactos desproporcionais. Evitar que ele aconteça é muito mais eficiente do que tentar restaurar depois. Mas, onde já houve perda, o reflorestamento é indispensável”, reforça.

Amazônia: o coração hídrico do planeta

Embora a Amazônia seja frequentemente descrita como “o pulmão do mundo”, Franco prefere outra metáfora. “Em termos de oxigênio, essa expressão está incorreta. A floresta é, na verdade, o coração hídrico do planeta. É ela que bombeia a umidade que alimenta as chuvas e mantém o equilíbrio térmico do continente”, diz

A perda desse coração, alerta o pesquisador, compromete não apenas o regime de chuvas, mas o próprio balanço de carbono global. “O desmatamento reduz a capacidade de fixação de carbono e, pior, transforma a floresta em fonte emissora. Ou seja, além de deixar de absorver, ela passa a emitir mais CO₂, intensificando o aquecimento global”, explica.

Rios que sustentam a vida

Mais do que um fenômeno atmosférico, os rios voadores simbolizam a interdependência entre ecossistemas, economia e sociedade. “A moral da história é simples”, conclui Franco. “Sem floresta, não há rios voadores. Sem rios voadores, não há chuva. E sem chuva, não há agricultura nem estabilidade climática. Preservar a Amazônia não é uma questão regional, é uma necessidade vital para o Brasil e para o planeta”, conclui.

Fonte: SENSU Consultoria de Comunicação 

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