*Por Aline Locks
O momento não é para brindes, quando um dos temas mais discutidos do momento em nosso segmento é a denúncia de uso de trabalhadores em condições análogas à escravidão nos processos de colheita de uvas para a produção de vinhos de três importantes vinícolas gaúchas.
Não é necessário repetir detalhes do caso — fartamente noticiado pela mídia e, de resto, ainda alvo de investigação pelas autoridades competentes. Fundamental, porém, é refletir sobre o caso para que ele deixe lições perenes ao agronegócio e aos demais setores.
Sob a ótica ESG, o episódio demonstra a necessidade de controles rigorosos das cadeias de fornecimento e das empresas subcontratadas. Esta tem sido uma demanda cada vez mais frequente e normatizada, principalmente em países importadores. Fazer o dever de casa é necessário, tanto para a produção local quanto para a exportada.
Na França, por exemplo, há legislação específica — com o sugestivo nome de Lei Francesa do Dever de Vigilância — para responsabilizar corporações instaladas no país que se beneficiem de trabalho escravo, mesmo que o crime tenha sido cometido por fornecedores fora do país.
Os Estados Unidos, por sua vez, impedem a entrada no país de produtos fabricados no exterior com o uso de formas contemporâneas de escravidão. Já houve casos, há mais de uma década, de suspensão de compra de açúcar brasileiro.
Fica assim um alerta — que vale para as grandes corporações e para áreas de compras de empresas de todos os portes, inclusive propriedades rurais que costumam contratar trabalhadores temporários para operações de plantio e colheita, entre outras: esta não é tarefa em que a primeira variável deva ser a busca por melhor preço.
Ao avaliar um fornecedor é necessário conhecer suas políticas de trabalho, formato de contratação, políticas de sustentabilidade, privacidade, segurança, saúde financeira, plano de continuidade de negócios e suas práticas de inclusão. Não adianta aplicar modelos excelentes dentro da organização e fechar os olhos para o que acontece com toda a rede. O custo associado a esse processo de due diligence também precisa ser incorporado no planejamento orçamentário das empresas.
Custo, nesse caso, talvez possa ser encarado como investimento. Além de evitar possíveis aborrecimentos futuros, ao incorporar melhores condições de trabalho o empresário estará semeando condições para obter melhor retorno com eficiência e comprometimento de colaboradores satisfeitos. Melhores processos geralmente resultam em melhores produtos, que por sua vez geram clientes felizes e fidelizados.
Ao poder público, por sua vez, cabe não apenas a fiscalização, mas o fomento, através da orientação e de incentivos, em especial para pequenas empresas, que também precisam ser diligentes com essa questão. Também terá retorno, com um ambiente de negócios mais saudável e produtivo.
Dever de vigilância
Em nenhuma hipótese as empresas devem deixar de avaliar a sua cadeia de valor, isso é inaceitável nos dias de hoje. No caso das vinícolas gaúchas, por exemplo, há informações de que um dos responsáveis pelas empresas subcontratadas já havia sido alvo de denúncia semelhante anos antes, em Santa Catarina.
Seria indício relevante para, no mínimo, uma apuração mais rigorosa sobre a atuação do fornecedor. Como indica a lei francesa, é necessário exercer o “dever de vigilância”. Não fazê-lo é abrir brecha para ser responsabilizado judicialmente como cúmplice das práticas ilegais de seu fornecedor.
Alegar desconhecimento — espécie de justificativa-padrão utilizada pelas marcas envolvidas em situações como essa — não é cabível, seja perante a justiça, seja perante a sociedade. É, quando muito, um reconhecimento de que não se está fazendo boa gestão corporativa e de que eventuais políticas de ESG alardeadas pela empresa são propaganda enganosa.
Tentar transferir responsabilidades também não é admissível atualmente. O caso das vinícolas gaúchas tem sido pródigo em manifestações nesse sentido, inclusive de entidades empresariais ávidas em preservar a reputação de associadas e da região.
Os três grupos envolvidos — Garibaldi, Aurora e Salton — divulgaram notas alegando desconhecimento das práticas e informando o rompimento do contrato com o fornecedor. Já o Centro da Indústria e Comércio em Bento Gonçalves (CIC-BG), preferiu associar a o uso de trabalhadores em condições degradantes à falta de mão de obra na região, provocada pela existência de programas como o Bolsa Família, que, na visão de seus dirigentes, faz com que pessoas deixem de buscar empregos porque supostamente “sobrevivem através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Uma recente mudança nas fiscalizações de contratações de temporários foi, por outro lado, apontado como um efeito indesejado da reforma trabalhista realizada no governo Temer. É assunto que permanece em pauta há alguns anos, pelo menos nas palavras de empresários que dependem de mão de obra de baixa qualificação e sazonal. É queixa recorrente a dificuldade em recrutar ou encontrar pessoas dispostas a fazer este trabalho.
Também não é de hoje que o argumento do Bolsa Família tem sido utilizado para justificar tal dificuldade. Assim, vale pelo menos a reflexão: será essa uma questão real que precisa ser tratada? Se sim, quais as alternativas? Temos que admitir que em um país como o Brasil, programas assistenciais são fundamentais para garantia aos direitos básicos dos cidadãos, como alimentação e moradia. As oportunidades de trabalho precisam ser boas a ponto de as pessoas entenderem que esta opção é melhor do que depender de um programa assistencial. Longe de ser um problema fácil, a questão social e trabalhista brasileira exige e deve ser encarada de frente para buscar soluções.
Em casos como o das vinícolas, o boicote às marcas é apenas uma sinalização de virtude, com resultados nem sempre eficientes, e sozinho não contribui para a solução do problema. O Brasil instituiu, ao longo dos últimos anos, uma série de ferramentas que visam a coibir a prática e criar constrangimentos econômicos para quem fere a legislação. O Ministério do Trabalho mantém, por exemplo, o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, a chamada “lista suja”, fonte pública de dados que permite o setor empresarial consulte CNPJs e CPFs na gestão de risco de seus negócios.
Desde 2010, por decisão do Conselho Monetário Nacional, a lista precisa ser checada pelas instituições financeiras para a concessão de crédito rural. O cadastro também é utilizado por fundos de investimento nacionais e internacionais nas decisões de alocação de seus recursos. A Plataforma Produzindo Certo utiliza as informações em seu protocolo socioambiental.
Novos casos como o das vinícolas gaúchas demonstra que ainda há muito que fazer, principalmente no setor corporativo. O dever da vigilância é imperativo para quem quer ir além do discurso ESG.
*Aline Locks é engenheira ambiental, cofundadora e atual CEO da Produzindo Certo, solução que já apoiou a maneira como mais de 6 milhões de hectares de terras são gerenciados, através da integração de boas práticas produtivas, respeito às pessoas e aos recursos naturais. Liderou projetos com foco em inovação e tecnologia, como o ‘Conectar para Transformar’, um dos vencedores do Google Impact Challenge Brazil. Recentemente foi selecionada pela Época Negócios como um dos nomes inovadores pelo clima, é uma das 100 Mulheres Poderosas da revista Forbes e uma das líderes do agronegócio 2021/2022 pela revista Dinheiro Rural
Fonte: Rafaela Conte