Por Leandro Amaral*
José, um produtor rural do interior de Goiás, tinha nos olhos o brilho de quem construiu um futuro. Sua fazenda, a Esperança, passada de geração em geração, era seu orgulho. Mas, em 2025, o brilho se apagou. Uma renegociação de dívidas feita às pressas e garantida pela sua própria terra em alienação fiduciária transformou anos de trabalho em pesadelo. Em poucos meses, com a nova dívida impagável, José viu o banco consolidar a propriedade, e o nome “Esperança” virou uma ironia cruel.
Cenário Crítico: uma tempestade perfeita no campo
A história de José não é isolada. O agronegócio brasileiro enfrenta uma crise de endividamento sem precedentes. A inadimplência do crédito rural para pessoas físicas atingiu a marca alarmante de 5,14% em agosto de 2025, segundo estudo da L.E.K. Consulting baseado em dados do Banco Central. Em uma pequena diferença de 2 anos, em agosto de 2023, essa taxa era de 0,94%. Ou seja: um salto de mais de 400% que grita por atenção.
As perspectivas futuras são igualmente sombrias. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP) projeta quedas drásticas na rentabilidade para a safra 2025/26: 36,7% para a soja e impressionantes 92% para o milho. Nesse cenário, a consultoria L.E.K. é categórica: “a recuperação do setor vai demorar ainda alguns ciclos”.
E essa realidade já cobra seu preço. Em Mato Grosso, o maior produtor nacional, 20% dos agricultores operaram com prejuízo na produção de soja nas safras 2022/23 e 2023/24. Na segunda safra de milho, a situação foi catastrófica: 90% dos produtores tiveram prejuízo em 2022/23, 70% em 2023/24 e 65% em 2024/25. Um cenário de alerta máximo.
A armadilha das renegociações “a Toque de Caixa”
Diante do aperto financeiro, a corrida por renegociações se intensificou. Bancos e produtores buscam soluções, mas o que vejo na prática é preocupante: dívidas antigas, muitas vezes a juros controlados, estão sendo renegociadas a taxas que frequentemente superam os 20% ao ano.
E aqui reside um problema matemático insolúvel: se o produtor paga 20% de juros ao ano, seu lucro operacional precisa ser no mínimo superior a 20% apenas para que a dívida não continue crescendo. Mas, quantos produtores realmente conhecem seu lucro operacional? Quantos têm projeções realistas que justifiquem assumir juros tão altos, especialmente com as previsões de queda na rentabilidade?
Infelizmente, a análise técnica criteriosa é substituída por uma aposta na esperança de que “2026 será melhor”. Isso não é gestão financeira. É um jogo de azar com o futuro do patrimônio familiar.
Alienação Fiduciária: o perigo silencioso
O agravante mais perigoso dessas renegociações é a exigência da alienação fiduciária sobre as propriedades rurais. Muitos produtores, pressionados, assinam sem compreender as profundas implicações jurídicas, mas a alienação fiduciária de bem imóvel, regida pela Lei 9.514/97, é uma modalidade de garantia substancialmente mais arriscada para o devedor do que outras, como a hipoteca, por exemplo.
Na alienação fiduciária, a propriedade do imóvel é transferida ao credor (o banco) em caráter fiduciário. O produtor mantém a posse direta do bem (continua produzindo), mas a propriedade legal do imóvel passa para o nome do banco até que a dívida seja totalmente quitada. É uma condição jurídica que coloca o produtor em uma posição de grande vulnerabilidade.
E as consequências dessa transferência fiduciária são enormes, além de frequentemente subestimadas:
- Execução Rápida e Extrajudicial: Em caso de inadimplência, o credor pode consolidar a propriedade em seu nome de forma muito mais célere e, na maioria dos casos, sem a necessidade de um processo judicial. O procedimento é predominantemente extrajudicial.
- Prazo Curto para Purgação da Mora: O devedor tem um prazo reduzido e restrito para quitar o débito em atraso e evitar a perda definitiva do bem. Há pouca margem de manobra.
- Tratamento Extraconcursal na Recuperação Judicial: Diferente de outras dívidas, os créditos garantidos por alienação fiduciária possuem tratamento extraconcursal. Isso significa que, mesmo que o produtor entre com um pedido de recuperação judicial para reestruturar suas finanças, o credor fiduciário pode executar a garantia paralelamente, fora do processo de recuperação, comprometendo o principal ativo da produção.
- Menor Espaço para Defesa: As possibilidades de defesa do devedor são mais restritas, uma vez que a consolidação da propriedade em favor do credor é quase automática após o inadimplemento e esgotamento dos prazos legais.
Em termos práticos, a propriedade, que representa anos de trabalho e o sustento da família, pode ser perdida antes mesmo de o produtor conseguir se organizar financeiramente ou buscar alternativas de reestruturação.
ANTES DE ASSINAR, VERIFIQUE:
- Seu lucro operacional real: Não confunda faturamento com lucro, nem fluxo de caixa com lucro operacional. Considere TODOS os custos, inclusive depreciação e pró-labore. Busque auxílio de contador especializado em agronegócio.
- Projeções realistas para 3-5 anos: Sua renegociação precisa ser viável mesmo em um cenário pessimista (queda de preços, aumento de custos, quebra de safra). Baseie-se em dados de institutos sérios (Cepea, Conab, Imea).
- Lucro operacional > taxa de juros? Se a taxa é 20% a.a., seu lucro operacional precisa ser superior a 20%. Caso contrário, sua dívida continuará crescendo mesmo com pagamentos.
- Todas as cláusulas do contrato: Leia o contrato inteiro. Identifique cláusulas de vencimento antecipado, forma de capitalização dos juros, prazos e as consequências do inadimplemento.
- Tipo de garantia exigido: Alienação fiduciária é a mais arriscada. Considere outras garantias (penhor de safra, aval, hipoteca) antes de oferecer sua propriedade principal.
- Simulação de cenários adversos: E se houver quebra de safra? E se o preço cair 30%? A renegociação ainda funcionará? Se a resposta for “não”, ela é inviável.
- Consultoria especializada: Consultoria Financeira para análise econômica e advogado especializado para análise do contrato e riscos jurídicos. O custo dessa consultoria é infinitamente menor que a perda de sua propriedade.
- Plano B definido: O que você fará se não conseguir pagar? Há ativos não essenciais para venda? Há possibilidade de parceria/arrendamento? A recuperação judicial é uma opção viável?
SINAIS DE ALERTA:
- Instituição financeira pressiona por assinatura rápida (“condição só vale até amanhã”).
- Taxa de juros superior a 18-20% ao ano.
- Não há análise formal e detalhada de sua capacidade de pagamento.
- Exigência de todas as propriedades em garantia fiduciária.
- Contrato extenso e complexo sem tempo hábil para revisão por especialista.
Alternativas antes da Renegociação Arriscada
A boa notícia é que a renegociação com alienação fiduciária não é o único caminho. Há alternativas que devem ser exploradas exaustivamente antes de colocar o patrimônio familiar em risco:
- Linhas Governamentais com Condições Melhores: O programa Desenrola Rural, lançado em 2025, oferece descontos escalonados que podem chegar a mais de 90% para a agricultura familiar. Até julho de 2025, já havia beneficiado 175.543 agricultores com R$ 6,3 bilhões renegociados. [Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário]. O governo também autorizou R$ 12 bilhões em nova linha de crédito com taxas de 10% ao ano para produtores atingidos por eventos climáticos. [Fonte: Ministério da Fazenda]. Verifique seu enquadramento.
- Negociação Administrativa Aprofundada: Muitas instituições têm margem para negociar taxas, prazos e garantias. Uma negociação bem fundamentada, com números e projeções realistas, conduzida por um profissional, pode resultar em condições substancialmente melhores do que a primeira proposta do gerente.
- Venda Estratégica de Ativos Não Essenciais: Avalie a venda de um talhão de terra menos produtivo, máquinas subutilizadas ou outros ativos para gerar caixa suficiente e reduzir a dívida a um nível administrável, evitando a alienação fiduciária sobre a propriedade principal.
- Recuperação Judicial Preventiva: Não encare a recuperação judicial como um “fracasso”. É uma poderosa ferramenta legal de preservação da empresa rural. Quando bem conduzida e em tempo hábil (preventivamente), ela permite suspensão de execuções, renegociação de todas as dívidas simultaneamente, prazos alongados de pagamento e a manutenção da atividade produtiva, salvaguardando o patrimônio familiar.
A verdade matemática que não mente
Há uma verdade inquestionável no agronegócio: se seu lucro operacional é consistentemente menor que a taxa de juros da sua dívida, você não tem apenas um problema de fluxo de caixa. Você tem um problema estrutural de viabilidade econômica.
Renegociar nessas condições, com juros altos e garantias pesadas, é apenas postergar o inevitável. A dívida continuará crescendo exponencialmente, as parcelas se tornarão impagáveis, e a execução da garantia fiduciária virá, muitas vezes, mais rápido do que se espera.
O rinoceronte cinza e a decisão mais importante
A situação é um “Rinoceronte Cinza”. Um problema de grandes proporções, visível, mas que muitos escolhem ignorar, esperando que se resolva sozinho.
A inadimplência recorde de 5,14%, as projeções de queda abrupta na rentabilidade e a avalanche de renegociações arriscadas são o rinoceronte à vista. Quando ele começar a correr, na forma de execuções em massa de propriedades rurais, será tarde demais para reagir.
Sua propriedade rural não é apenas um ativo financeiro; é o fruto de gerações de trabalho, sonhos e sacrifícios. Não a coloque em risco baseando-se em promessas ou na pressão bancária. A renegociação, quando bem feita, é um alívio. Mas quando mal planejada e com garantias fiduciárias sobre a terra principal, torna-se uma cilada mortal.
Produtores profissionais sobrevivem, os que improvisam desaparecem
Há uma frase que costumo repetir: “O agronegócio perdoa muitos erros, menos o erro financeiro repetido.”
Os próximos anos trarão mudanças estruturais profundas no campo brasileiro. Muitas propriedades trocarão de mãos. O agronegócio se concentrará cada vez mais nas mãos de produtores profissionais, daqueles mais organizados, com gestão financeira sólida, que utilizam ferramentas de proteção (hedge, seguros, travas de preços) e que tomam decisões baseadas em dados, não em esperanças.
Produtores que conseguiram manter lucro operacional positivo mesmo nas safras difíceis de 2022/23 e 2023/24 têm muito mais chance de atravessar este período e emergir fortalecidos. Aqueles que operaram no prejuízo e agora estão renegociando sem análise criteriosa estão, literalmente, jogando com o futuro de suas famílias.
Antes de colocar sua propriedade em alienação fiduciária, faça a si mesmo três perguntas fundamentais:
- Eu conheço, com precisão, meu lucro operacional dos últimos três anos?
- Esse lucro operacional é maior que a taxa de juros dessa renegociação, e será sustentável pelos próximos 3-5 anos considerando as projeções do setor?
- Eu compreendo todas as consequências jurídicas da alienação fiduciária e o que acontecerá se eu não conseguir pagar?
Se a resposta para qualquer uma dessas perguntas for “não” ou “não tenho certeza”, NÃO ASSINE. Busque orientação especializada com um advogado experiente em crédito rural.
A melhor execução é aquela que nunca acontece, pois houve planejamento, análise criteriosa e decisões baseadas em dados concretos, não em esperanças de safras extraordinárias. Seu patrimônio, sua família e seu futuro agradecem.
*Leandro Amaral é advogado com atuação especializada no Agronegócio desde 2004; com atuação destacada em crédito rural, recuperação judicial de produtores e reestruturação de dívidas agrícolas Master of Laws em Direito Empresarial pela FGV, MBA em Direito do Agronegócio pelo Ibmec; Especialista em Recuperação de Empresas e Gestão Patrimonial pelo Insper; Especialista em Contratos do Agronegócio pelo IBDA; Certificação Febraban em Crédito Rural; Administrador Judicial pela Esmeg; membro da U.B.A.U. – União Brasileira dos Agraristas Universitários e da Academia Brasileira de Crédito do Agro; Sócio fundador do escritório Amaral e Melo Advogados e da Empresa de Consultoria AgriCompany.
Fonte: Marcela Freitas