Você já parou para pensar que os papéis que você guarda com os resultados das análises de solo podem valer dinheiro? Não estamos falando de financiamento, nem de crédito rural subsidiado. Estamos falando de algo maior: o mercado global de carbono.
Há anos, agricultores no mundo inteiro seguem à risca o costume de mandar amostras de solo para análise, acompanhando o pH, o fósforo, o potássio… e, claro, a Matéria Orgânica do Solo (MOS). O que poucos sabem é que esse dado, aparentemente comum, é também a chave de entrada para um novo tipo de negócio agrícola: vender o carbono que o solo está guardando.
O mercado de carbono ainda é um clube exclusivo – e o pequeno produtor está fora dele. É fato que os principais mercados voluntários exigem muito mais complexidade na aferição do carbono do que a Matéria Orgânica do Solo. Os protocolos GHG são mais sofisticados e mede o carbono total, em uma análise mais precisa, porém mais cara.
O mercado de carbono é um sistema ainda dominado por grandes emissores e corporações. Ele opera como um “clube” de quem pode pagar para poluir e de quem pode provar que está evitando ou sequestrando carbono da atmosfera. O problema é que essa “prova” custa caro: envolve sensores, drones, auditorias, medições complexas, e muita papelada.
Adivinha quem fica de fora? O pequeno e médio produtor. Aquele que adota o plantio direto, mantém cobertura do solo, faz rotação de culturas, usa composto orgânico, mas não tem acesso a uma plataforma digital para dizer ao mundo: “Meu solo está sequestrando carbono.”
O que é MOS e por que ela importa?
A Matéria Orgânica do Solo é uma espécie de carteira de identidade da saúde da terra. Ela indica o quanto de carbono está estocado naquele solo. Quanto maior o teor de MOS, mais carbono está retido — e menos CO₂ na atmosfera.
E aqui vem o pulo do gato: a MOS já é medida rotineiramente nos laboratórios do Brasil inteiro. Em geral, ela aparece como uma porcentagem no laudo de fertilidade do solo. Uma fórmula simples permite converter essa porcentagem em toneladas de carbono por hectare, e depois em tCO₂ equivalente — a moeda oficial dos créditos de carbono.
A ferramenta já está nas suas mãos. Só falta usá-la
A proposta é simples e provocadora e, sobretudo, prática: vamos convidar os agricultores a usar os dados que já têm e se posicionar no mapa do mercado de carbono.
Imagine um sistema nacional onde os dados de MOS enviados por laboratórios certificados vão para uma plataforma digital. Essa plataforma compara a variação ao longo dos anos e calcula o quanto de carbono a mais foi sequestrado. Se for verificado que houve ganho (por exemplo, um aumento de 0,2% ao ano), isso pode ser transformado em crédito de carbono — e vendido.
Soa utópico? O Brasil já tem estrutura para isso
O país já conta com a Plataforma Agro Brasil Sustentável, com o CAR, com laboratórios credenciados pelo MAPA, e com um sistema de inventários ambientais (SICV-Brasil). Já temos o BioAS, um modelo da embrapa que integra a máteria organica com os microrganismos, identificando a SAÚDE do solo. Esse sistema conta com milhares de análises de solo feitas segundo protocolos rigorosos. E temos ainda o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) em processo de regulamentação.
Em outras palavras: o que falta não é tecnologia, é conexão entre as pontas. E talvez, o mais importante: falta coragem para romper com a lógica de que só os grandes entram no jogo do carbono.
Você sabia que em algumas condições os sistemas de agricultura conservacionista como o Plantio Direto retem mais carbono no solo do que a própria vegetação nativa? Isso foi provado por dois pesquisadores brasileiros e vai fazer toda a diferença nesse mercado de carbono mundial!
Qual o tamanho do potencial? Os números impressionam
Simulações com base em dados da Embrapa mostram que, em cinco anos, um aumento modesto de 1% no teor de MOS pode gerar até 25 toneladas de CO₂ equivalente por hectare. Em uma propriedade de 100 hectares, isso dá 2.500 tCO₂e. Com os preços atuais no mercado voluntário variando entre 5 e 20 dólares por tonelada, estamos falando de R$ 60 mil a R$ 250 mil em cinco anos.
E tudo isso sem precisar mudar radicalmente a forma de produzir — apenas registrando e reconhecendo os benefícios ambientais de práticas que muitos já adotam.
Os desafios existem — mas não são intransponíveis
Claro, existem obstáculos: padronizar as análises, garantir que o dado seja auditável, criar plataformas seguras e acessíveis. Mas também existem soluções. O próprio MAPA já publica normas para credenciamento de laboratórios de Defesa Agropecuária, é estranho porque não há até hoje um padrão oficial de análise de solo. O GHG Protocol e o Guia Qualidata oferecem diretrizes robustas para construir bancos de dados interoperáveis e confiáveis. O que falta é vontade política, um bom projeto e organização do setor para tornar isso realidade.
A aposta é no solo — e no protagonismo do produtor brasileiro
A Iniciativa 4 por 1000, lançada na COP21, afirma que um aumento anual de 0,4% nos estoques de carbono no solo já seria suficiente para compensar uma parte considerável das emissões globais. Isso significa que o carbono do futuro está no solo, não na floresta nem no oceano. E o Brasil, com seu conhecimento agronômico e diversidade produtiva, pode ser líder nesse novo mercado.
Mas essa liderança precisa ser inclusiva, descentralizada e baseada em ciência e transparência. E tudo começa com o reconhecimento: o que o agricultor já faz com seu solo pode valer muito mais do que ele imagina.
O PronaSolos, por exemplo, é um programa federal que tem como objetivo realizar um mapeamento completo e detalhado dos solos brasileiros, com o apoio de várias instituições e tem como objetivo, fornecer informações para o desenvolvimento sustentável, o uso racional da terra e a gestão de recursos naturais.
A COP30 como janela de oportunidade para o produtor rural brasileiro
A Conferência do Clima da ONU (COP30), que será sediada em Belém do Pará em 2025, representa muito mais do que um evento diplomático. É uma janela de oportunidade estratégica para o Brasil mostrar ao mundo que sua agricultura pode ser parte da solução climática global — não apenas evitando desmatamento, mas gerando ativos em remoções de carbono.
O solo brasileiro é um ativo climático de escala planetária. E os dados de Matéria Orgânica do Solo (MOS), se organizados e auditados, podem virar um novo tipo de commodity verde: a tonelada de CO₂e sequestrada por manejo regenerativo. Com um programa robusto de integração entre laboratórios, cooperativas e plataformas digitais, o Brasil pode chegar à COP30 com um modelo inédito: um sistema de carbono baseado no solo, feito com dados que os agricultores já têm, auditável, escalável e, principalmente, inclusivo.
Se a floresta amazônica é o símbolo da conservação, o solo agricultável pode ser o símbolo da restauração produtiva com justiça climática.
BioAS: o que já temos é ouro puro
Pouca gente fora do círculo técnico conhece o BioAS, uma metodologia desenvolvida pela Embrapa para avaliar a saúde do solo com base em indicadores físico-químicos e biológicos. O mais impressionante é que, desde 2019, já foram processadas mais de 15 mil amostras em todo o território nacional, com dados organizados em um sistema público, transparente e tecnicamente robusto.
O BioAS mede, entre outros parâmetros, a Matéria Orgânica do Solo (MOS), criando um banco de dados inédito que combina ciência, escala nacional e relevância agronômica. É o tipo de estrutura que qualquer país do mundo gostaria de ter para implementar um sistema de pagamento por serviços ambientais — e nós já temos.
Incorporar o BioAS como referência técnica nos futuros protocolos de carbono do solo no Brasil é mais do que inteligente. É estratégico. Significa economizar tempo, garantir credibilidade e aproveitar o conhecimento acumulado pela agricultura brasileira em favor de um modelo climático justo e rastreável.
Fonte: Mariana Cremasco